N’ A Feminina Prudência, de Júlia Lello

N’ A Feminina Prudência, de Júlia Lello

 

Por  Mário J. Gomes 

 

N’ A Feminina Prudência, de Júlia Lello, há sempre um jogo de equívocos. Prudência? Ou imprudência!, mas do que estamos a falar?, a dita imprudência pode ir de irreflexão, o que é de evitar, dizem, até à temeridade, o que é de promover; mas será prudente?… um título assim, que nos confunde e desampara!

Logo no primeiro poema, o equívoco e consequente insegurança continuam “O livro ou talvez não”. O que se procura, porque se fazem os caminhos – por um livro ou por uma pessoa? Uma certa pessoa, talvez.

É um jogo, um jogo de equívocos (1), já assim o era nos anos 80, o que talvez tenha levado Natália Correia a filiar a escrita de Júlia Lello “nas poetisas-monjas do período barroco”, sobretudo devido a um dos três poemas (da sua segunda publicação) que a autora designou como “cultistas” e que era um exercício com os diversos conceitos que a palavra “privar” podia assumir. Mas se o jogo se mantém, o espaço “místico” onde ele se inscrevia já não existe. Aqui e agora temos um lugar bem físico de uma livraria o ascetismo tornou-se um hiper-realismo onde se circula. A mulher na sua circunstância, numa livraria, em busca de um livro (?) “apaixonável/apaixonante”, quer “o enamoramento e o êxtase”. Para isso, e depois de uma esquiva memória, “atravessa, percorre, dirige-se, sai, atravessa e chega à rua”. Ao real. Depois à realidade doméstica. Continua a pensar, a pensar no livro e quando no dia seguinte regressa decidida a apossar-se dele volta a percorrer os caminhos para chegar, mas não chegar ao lugar de onde na véspera partiu… a livraria já fechou… Mas, interroga, seria o livro que realmente desejava? Talvez o que fica do poema são os caminhos feitos e refeitos, uma vez insegura, outra convicta, “contente” mesmo, em busca de um livro, seria um livro.

Para mim, o que fica, o que realmente permanece, é a moldura que criou, inventou, imaginou para circular – quase correr – quase ter um objectivo. Mas, afinal, qual? Fica a moldura e a deriva em movimento. Como nos contos, o que conta é o desenlace, o final que dá sentido a toda a acção narrativa. Talvez não fosse o livro o que pretendia, mas alcançar a pessoa, ou as pessoas? Como Agustina, em diálogo com Maria Velho da Costa (2), dizia, e cito de cor: os poetas estão desligados das pessoas nas suas vidas quotidianas, corriqueiras, mas permanecem ligados a esses Seres umbilicalmente – uma raiz que liga os Poetas ao “Espaço Interior do Mundo”, não era o que Serras Pereira (3) escrevia sobre Rilke?

Voltando ao poema, à interrogação ontológica: seria um livro, ou pessoas, o que se procura. Ou mesmo, uma certa pessoa, responderia como Rilke que o que o Poeta sempre procura é a mãe. Cito O Poeta: «(…) Mãe, tu fizeste-o pequeno, foste tu que o começaste; // para ti é que ele era novo, arqueaste sobre os seus olhos // novos o mundo amigo e afastaste o mundo alheio. (…)» (4)

Porque por ela, pela Mãe primordial, chega a nós, a todos nós, pela voz, a linguagem humana verbalizada: pela FALA somos sossegados, tranquilizados. E é dessa fala interior, desse fluxo de pensamento, que tratamos aqui e agora: o fluxo do pensamento feminino. E abandonamos desde já os clássicos que nos têm estado a fazer companhia para nos dedicarmos em exclusivo à escrita deste livro, nem seria agrado da Poeta que continuássemos com eles. Desde o primeiro poema o que se faz ouvir é uma voz independente, autónoma, possante e criadora que bebe de todas fontes e quando tem sede escreve um livro. Não porque tenha contratos editoriais, mas porque ele brota da sua Natureza. É a sua identidade feminina que dá à luz um novo rebento. E por nenhuma outra razão, e é por isso que escrevo estas palavras, para este Ser Inteiro que vive a Sua Poesia (5).

É essa a realidade, a primeira Voz que ouvimos enquanto bebés é a de nossas Mães, das Mulheres, nossas mães. Esmagadoramente, o que nos diz a tradição é que são as Mulheres que cuidam dos bebés seus filhos. Embora as sociedades tendam, hoje, a equilibrar os géneros – é o feminino, são as MULHERES QUE NOS FALAM primeiramente. Uma voz que nos transmite segurança, o bebé é falado antes de nascer, o bebé é falado antes de ele próprio falar – e o que ouve transmite-lhe conforto, protecção – e o que é isso senão AMOR.

É disso que falam as mulheres: de Amor. Mesmo pelos ralhetes que os maridos, companheiros e amantes recebem é o Amor que é transmitido para eles se emendarem… [SORRISO] não saberão se falo a sério ou estou a brincar… [um estranho e longo silêncio] MAS, contra a opinião pública, o alter-ego dos portugueses é feminino e o poder das mães é incomensurável na nossa sociedade que muitos dizem ter ausência de “pai” algo que vem de muito detrás, das ditas “Descobertas” e depois da Emigração, onde os homens partiam em massa para o desconhecido (6). A preponderância de uma auto-representação feminina dos homens portugueses está patente nas centenas de inquéritos que o saudoso antropólogo-psicanalista José Gabriel Pereira Bastos apresentou na sua tese de doutoramento. Fizeram-se inquéritos em todas as regiões do país, notando-se, isso sim, que essa tendência era mais marcante de Norte para Sul (7).

O Poema “do que falam as Mulheres” abre o livro à temática central. Este Poema fará o seu caminho, para mim fará História: é o Manifesto para o Século XXI, o Século das Mulheres. É um poema polifónico, vai onde todas as Mulheres vão: a todo o lado, passa em revista este nosso tempo e não deixa pontas soltas. Mas também não é um panegírico da moda é um Poema para o futuro.

O livro abre-se ao Mundo feminino em todas as suas vertentes, são histórias da vida quotidiana a que, pelo humor, pelo imprevisto ou qualquer outro artefacto da escrita nunca é claro e definitivamente explicitado, é sempre obra aberta, e mantendo-se num limbo de hipóteses faz o poema perdurar na memória que em nós se mantém interrogando-nos.

Histórias que muitas vezes assumem a prosa, que mesmo poética, remete como já se disse para o “conto” que tem uma forma narrativa própria que desemboca sempre num desenlace, mas que, na Júlia Lello, nunca fica encerrado.

Há certos momentos na poesia, que a maestria da escrita, nos faz recordar outras suas poesias de outros tempos – barrocas sem dúvida, pelos jogos inesperados de palavras e metáforas, paradoxos e antíteses – e que será, muito provavelmente a natureza, a matriz, desta escrita que nos cativa sempre, porque nos é familiar. Ironia, também, perante uma sociedade que deixou de compreender mas que com ela convive sem dramas antes com humor. Uma comicidade metafórica moderada, controlada. Não diz o que não quer, não escapa para uma exposição da confidencialidade indiscreta e inestética. Em tudo, em todos os casos, domina a escrita como bem entende: como se poderia escrever sobre uma chef dos dias de hoje: “tem mão”.

A sua Arte Poética explica-se e explica-nos: o Poeta é um Operário da palavra, que Ama sobre todas as coisas, depois do Poema florescer no subconsciente há ainda muito trabalho por fazer – há que lhe limar as arestas como um bom pedreiro até ficar a pedra angular que o construtor-Poeta deseja. Cito: “Então para mim é isto, os poemas acontecem, tal como a vida, // Apenas com menos frequência.

Mas nos seus jogos de palavras, de súbito, irrompe um novo Poema de Amor – um soneto – e como pela primeira vez somos arrebatados pelo drama, mesmo que matizado pela espessura formal em que o Poema foi construído. É sempre um retorno a uma tragédia primordial, assim foi sentida, que se viveu e que lhe dá a autenticidade da Verdadeira Poesia. É uma Poesia Vivida.

Mas não menos intenso é o Amor maduro, uma dedicação atenta mas discreta. Alguns destes poemas que o tempo ensinou à Poeta, à Poetisa, quase nos deixam surpreendidos. O tempo ganha sempre novas qualidades, assim é, a ternura serena tornou-se avassaladora. Mas de uma coisa estamos certos “aos costumes, a autora, disse nada!” Será sempre uma eterna adolescente irreverente e indomável… à sua maneira…

Leio em todos os poemas, mais nuns que noutros, claro, um elogio à minha geração, e da Júlia – dos que tinham cerca de 20 anos no 25 de Abril – não é exactamente um elogio, é uma exortação a mantermo-nos eternamente adolescentes – e fruir do que a sociedade de hoje nos dá, mas também lutar pelo que nos tira.

Concluo. Antes chamada condição feminina, agora, feminina prudência: as jovens mulheres, meninas, princesas permanecem ainda fechadas por portas trancadas por medos e preconceitos?! Em pleno Século XXI a fatalidade feminina mantém-se?, interrogo. Responda cada um à sua maneira, sabendo que este livro tem uma chave para abrir portas e as janelas estão abertas.

Finalizo com esperança, esperança aberta pela inteligência e pela palavra vibrante da Poeta, que força e rompe com a cinzentice triste da sociedade portuguesa, impondo a hipótese do triunfo do Amor sobre a decepção afectiva: cito um excerto: …// Elia Kazan realizou O Compromisso, // Um filme que nega as evidência e as probabilidades, // Para ver se esquecia os temporais // Que sempre destroem o Esplendor na Relva…//

Também eu sou um cinéfilo e também eu acredito que o Amor é sempre possível.

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NOTAS:
  1. Diz Hernâni Cidade sobre o Conceptismo: «[é] o desdobramento discursivo de um conceito: – uma premissa que se toma como realidade uma metáfora, e dela decorrendo, um raciocínio que vai dar a imprevisto paradoxo ou absurdo surpreendente. Nenhuns ornatos.» Em alternativa ao Cultismo que caracteriza como um permanente jogo de imagens, de construções frásicas, e de palavras… um jogo de equívocos, com o objectivo de ofuscar com tanto brilho. H. Cidade, “Prefácio” in A Poesia Lírica Cultista e Conceptista, Lisboa, Seara Nova, 1968, pp.XI E XII.
  1. A ARTE É QUE NOS SALVA NÃO SÓ DA IGNORÂNCIA OU DE UMA VIDA MESQUINHA E VIL, COMO DA MORTE. Ser escritor, escreve Agustina Bessa-Luis (ABL), é «como viver um episódio e estar já situado na sua história, presenciar um facto e não poder compartilhar da sua actualidade, estar vivo e ter olhos vazados, perdidos já numa ardente eternidade.» (É citado de “Os quatro Rios”) E continua Agustina B-L: «Como entende, eu quando me refiro a todo esse contacto refiro-me à doce promiscuidade, ao contacto humano de todos os dias. Mas pode haver um contacto criador que é o contacto que é filtrado através de toda a imaginação. (…) Não vamos encarar aqui perda como uma amputação, mas como generosidade. (…) O criador tem que optar.
Maria Velho da Costa – De certa forma por uma grande solidão?
ABL – SIM, DE CERTA FORMA É UMA SOLIDÃO. POR OUTRO LADO, NÃO O É – HÁ UMA ENORME LIGAÇÃO COM O MUNDO E COM OS SEUS.» (…)
Agustina Bessa-Luis em diálogo com Maria Velho da Costa para a Raiz e Utopia, nº.s 11/12, 1979. (As maiúsculas são minhas.)
  1. Escreveu Miguel Serras Pereira sobre as hermenêuticas literárias, num texto incontornável desde então (“Poesia e Psicanálise – Diálogo interminável” in Psicanálise 4, pp.57/62), seja-me perdoada a longa citação:
«Perante a linguagem, o poeta não usa, mas ousa.  Se trabalho poético há, trata-se do trabalho do poeta sobre si próprio através do que não é ele próprio (...) apesar do lugar essencial que a força imaginante ocupa na poesia, essa força imaginante que é, ao mesmo tempo, o umbigo da psique, a poesia está muito longe de ser actividade ou obra de um sujeito ensimesmado na sua subjectividade ou identidade egóicas  (...) É verdade que o fazer do poema arranca de alguma coisa que já lá está (...) Mas o que já lá está – língua, memória, paisagem ambiente, sedimentações imaginárias e assim por diante – ganha um sentido novo e um novo horizonte à luz da invenção que o poema é (...) ‘espaço interior do mundo’ (Rilke) (...)
«O espaço transicional (Winnicott), que é o espaço da significação, da linguagem e da cultura, não é o eu nem a coisa, mas o que está entre ambos [Roland Barthes], definindo um campo animado e, por assim dizer de vasos comunicantes, do qual o eu e a coisa, a identidade do sujeito e a identidade do objecto são como que dois pólos, ao longo de um processo complexo de ligações e diferenciação.
«A poesia e a arte são, nesta perspectiva, provas maiores da permanência e da actualidade sempre latente desta dimensão intermediária, onde vemos que o sujeito nunca é apenas ele próprio e que (...) a nossa relação com o mundo é a relação com uma paisagem de que somos por dentro e fora parte, indissociavelmente: uma paisagem que nos faz e que fazemos (...) E é por isso que o mais fundo de cada um de nós, umbilicalmente, comunica com o sem fundo do mundo». (o bold é meu)
  1. Rainer Maria RILKE, Poemas, As Elegias a Duíno e Sonetos a Orfeu, tradução Paulo Quintela, Porto, Ed. O Oiro do Dia, 1983, p.200 (Terceira Elegia).
  1. Natália Correia, “Introdução à Poesia Barroca Portuguesa” in Antologia da Poesia do Período Barroco, Moraes ed., 1982, pp.10/11.
«O conceito de perfeição não se destina a satisfazer os sentidos como ocorria no contexto sensorial do paganismo renascentista, mas a alma. A perfeição da forma reflacte a perfeição moral do conteúdo. A literatura converte-se numa práxis. Tem a função catártica de purgar o homem dos sentimentos negativos. Aqui são reconhecíveis os sinais de uma literatura que subentende a força mágico-transformadora da poiesis, que se assume como acção, que se desliteraliza para se hominizar, como nos (10) nossos dias aconteceria com o Surrealismo (aristotelizante, malgré lui, nos seus rasgos mágico-transformistas) cuja extracção barroca é irresistível reconhecermos na tenaz impugnação das mistificações idealista e racionalista.» (11)
  1. “Os portugueses comportam-se como povo que teve mãe, mas é órfão do pai (…) E esta explicação poderia ter desenvolvimento psicanalítico.” (António José Saraiva) é a partir daqui que Maria de Jesus Andrade Belo, construiu a sua tese de doutoramento e a publicou: Maria Belo, Filhos da Mãe, Lisboa, Editora Edeline, 2007.
  1. José Gabriel P. Bastos, Portugal Europeu – Estratégias Identitárias Inter-nacionais dos Portugueses, Oeiras, Celta Editora, 2000. «Os alentejanos procedem como todas as outras regiões purificam a sua auto-representação isentando-se dos defeitos que vêem nos outros. Ninguém em Portugal se diz tão “feminino”, e “exemplar de boa ruralidade”, mas são também processos identitários “contraditórios” escreve J. Bastos (ibidem: 132).»