Navegações de poder ser [Sobre a obra "Sou viagem", de Maria Isabel Fidalgo]

 

 Tiago Aires

Sou viagem - assim se apresenta este livro e assim se dá o mote que o há de orientar. E logo percebemos, pela presença do verbo ser, que este não é um livro sobre viagens, no sentido turístico, de veraneio, de formação cultural ou outro em que pensar se possa, pese haver Portugal, Paris, Jerusalém, Palmira e um variado conjunto de topos como praias, ilhas, pomares, searas, casas, portos – que são lugares como corações, pequenas navegações dentro da grande viagem.

Quem já conhece a escrita de Maria Isabel Fidalgo não estranhará a profusão de imagens aquáticas, de barcos, de praias, de mar e do que neles se encontra dos outros elementos: as aves, as brisas, as ilhas, o sol; nem será alheio à presença das figuras familiares, ao poder genesíaco do amor, mas também à ironia e à crítica que, por vezes, fazem a sua aparição. No entanto, poderá entregar-se a estes poemas esperando, com o conforto do familiar, o que ainda não tinha sido completamente dito.

Sou viagem diz-nos que a própria voz poética é esse percurso pelo espaço e pelo tempo a partir do centro. A viagem é a vida e, como tal, há os preparativos (os ascendentes), há a deslocação (os barcos), há a partida e a chegada e o regresso (o amor, a música, a dança, a poesia),  há os frutos do investimento (os descentes) e há as memórias (nos poemas). Como num pacto entre a memória, a vertigem do presente e o sonho, a viagem real materializa-se como só a palavra poética concede.

O livro começa precisamente com uma invocação à poesia - que esteja presente, que venha. Não creio que seja necessário esse pedido, pois ela esteve presente desde o início, continuou em todas as noites e em todas as manhãs, nos momentos de agir ou de esperar (não por acaso Penélope é convocada), na observação atenta e extasiada, e concretiza-se na construção dos sentidos do mundo através da escrita com letras de ouro, com uma leveza aérea e uma fluidez de água que seria inevitável numa voz feita de mar e luz, de espuma e combustão. 

Sou viagem também verá o fim aproximar-se, pois o barqueiro sempre nos levará para a outra margem e Chronos não se detém por ninguém. Por isso, sublinho, este é um “livro do tempo” e este sempre termina, tenhamos ou não feito todas as “navegações de poder ser” que a vida nos vai oferecendo como milagre.

Aqui, acabo eu e começa a viagem que agora importa.