O improviso de viver, de Graça Pires: Da poesia mais limpa

O improviso de viver, de Graça Pires: Da poesia mais limpa

Por Virgínia do Carmo

 

Estar aqui, ao lado de uma poeta que admiro desde o primeiro verso – desde o primeiro verso  seu que eu li, entenda-se – é de um encantamento incrível, e, ao mesmo tempo, de uma responsabilidade aterradora. Tenho um medo enorme de não interpretar bem as suas palavras, e esta é uma angústia que nunca me abandonará.  Mas tranquiliza-me um pouco o próprio teor dúbio do conceito de “interpretação”: “sentido em que se toma o que se ouve ou o que se lê, e que se julga ser o verdadeiro; comentário; versão. Interpretar pode ser, até, entendido como traduzir. Então, peço-vos que entendam o que vou dizer como a tradução do que a Graça escreveu na sua depurada linguagem poética para a linguagem talvez mais pobre, mas honesta, do meu próprio sentir.

Poderá ser diferente este eco das suas palavras em mim e nos outros, em vós, que também lereis este livro maravilhoso, mas a poesia tem este dom de se moldar à nossa alma, de se “afazer” (uma palavra que nós usamos muito em Trás-os-Montes e que eu gosto tanto), à forma do nosso coração. E como o meu coração gosta da forma dos seus versos e de como se afazem ao meu peito.

Este livro que hoje nos junta para minha alegria (tão bom abraçar a Graça depois de tanto tempo!) é mais um dos que se me acomodou no íntimo.

Começa assim:

Um súbito enredo trespassa o olhar

em descritivas formas.

A nitidez do silêncio persegue os lábios.

Decifra as palavras inefáveis.

Ardor em sangramento na língua.

Mistura de linfa e de terra no branco baço

dos crisântemos.

A tracejar de nostalgia a memória desfocada

dos lugares no litoral da infância.

 

E assim partimos para a aventura de folhear ou devo dizer, “habitar” este livro pelo tempo que nos demorarmos na sua leitura. É autora que nos convida naquele que, a bem de verdade, é o verdadeiro  início:

Vem

levar-te-ei para habitares comigo

o improviso de viver

(p.7)

É claro que este “convite” é maior do que o próprio livro, extravasa o seu conteúdo. Não sabemos se é um convite para a leitura, se para a vida. Talvez para ambos.

Mas assim é toda a poesia deste livro: uma incursão pela vida, pela sua intensidade, pelos seus meandros e enredos, pelas memórias, pelas coisas do mundo, também, pelo que dói, às vezes, no mundo.  

Visitamos a infância, não a da Graça, mas a minha, a vossa, recordamos não o que foi, mas o que para sempre é em nós, sentimos a sede, saboreamos o pão, por momentos temos asas, e é verão tantas vezes nestes versos.

Diz a poeta:

No rigoroso itinerário da lembrança

a sombra de um lobo espera

instintivamente em teu olhar

que a montanha se erga intacta e branca.

A mesma que trouxeste da infância

e perpetua dentro de ti a neve imaculada.

 

Contudo foi com um sorriso

deslumbrado e breve

que começaste a amar

a imperfeição da luz perto do mar

enquanto o verão

entornava julho no teu nome.

 (A imperfeição da luz, p.30)

E reparem como é sublime, esta poesia, que nos transporta para um plano tão etéreo que as coisas se tornam  pequenas e a alma imensa. Talvez como numa experiência de levitação em que, leves, sobrevoamos o nosso ser, as nossas dores, as nossas mágoas, a nossas alegrias e tudo o que sentimos elevado a um estado de pureza tal que se transforma em claridade. E emocionados nesta transparência, vemos melhor.

Sendo pessoal tantas vezes (estou certa de que muitas vezes será), a sua poesia não cabe em si, na pessoa que é, ela torna-se nossa, de cada um de nós, de tão elevada a uma dimensão que transcende a voz para se tornar eco audível apenas por dentro.

E acontece também que às vezes os seus poemas, não sendo pessoais, porque sobre o mundo, sobre os seus gritos e as suas feridas abertas, se tornam também nossos, elevados da mesma forma a esse estado de pureza poética. E damos por nós a tornar nossas as suas perguntas:

Qual o som do mar me questiono

qual o som do mar tão saturado de mortos?

Que sinos soarão por eles?

Quem fará a oração o sinal da cruz o requiem?

(excerto do poema “Múltiplas mortes”,  p. 57)

E há outras perguntas:

Olhem para nós. Ouçam-nos.

Não somos vultos sem identidade.

Somos mulheres.

Somos mães filhas irmãs amigas.

Temos um nome.

Indefesas frente ao terror

é silencioso o lamento o arrepio.

Qualquer gesto nos pode destruir.

Ficámos sem chão.

Avistamos a montanha

mas um deserto invisível

acorrenta-nos os pés.

O céu é um abismo.

Onde estão as estrelas

os anjos o nosso deus?

Não. Não choramos.

Temos o olhar parado nos livros proibidos

na inutilidade dos dias que hão-de vir

nas palavras reprimidas

na mais indecifrável prece

tão perto da descrença.

Quem poderá salvar-nos?

 (Lamento das mulheres afegãs, p 63)

Este cuidado em cumprir uma espécie de missão poética que também consiste em dar voz aos que sofrem as atrocidades de um mundo assimétrico, marca também esta obra, que, como dizemos na sinopse que fizemos juntas, é uma obra “transversal à vida, tão abrangente quanto inteira na sua profunda incursão pela poesia e por todas as coisas que a convocam.  É uma deriva de ideias onde se misturam as memórias com o pensamento desafiante de uma escrita que pretende a simplicidade.”

Desde sempre me recordo de ouvir a Graça falar de simplicidade. Essa simplicidade tão difícil porque exige tamanho trabalho de depuração, de talha da palavra, o burilar do verso até à exaustão para que nada sobre para além dessa vibração de luz a desbravar o silêncio, às vezes escuro.

Um trabalho que solidifica cada verso para nos emocionar de forma inigualável.

E sublinhar, ainda, o quão abrangente é esta obra onde até os outros cabem, os seus amigos, as pessoas dos seus afectos, e onde tenho a felicidade de me encontrar, também. Que privilégio indizível. A minha eterna gratidão, querida, Graça.

Termino como termina o livro, com o texto que remata este desfilar de poemas limpos, poemas sem ruídos e sem impurezas, como se tivessem sido coados pelo linho mais fino:

Pressentir a morte na desmesura de uma afronta

na opressão interminável de cada rua queimada

de cada disparo de cada cerco de cada agressão.

 

A revolta presa na arma do terror.

A coragem engatilhada nas mãos.

O susto das sirenes no rosto dos filhos

e na correria angustiada das mães.

O clamor sufocado nas lágrimas

e no sangue a quem dói violentamente

o exílio do chão onde nasceram.

A exaustão a golpear o corpo.

A força do silêncio a ensurdecer o grito.

 

Sem tréguas sem resgate sem sujeição

hão-de abraçar-se fortemente entre as ruínas.

(Entre ruínas, p. 64)

 

Lisboa, 18 de março de 2023