Poemas Tangerinos, de João Pedro Mésseder e Helena Mancelos

João Pedro Mésseder, poemas para crianças; -

Poemas Tangerinos, de João Pedro Mésseder e Helena Mancelos

Joana Rios da Rocha*

Publicado em As Artes entre as Letras, n.º 284, 10-2-2021, pp. 10-11

 

Poemas Tangerinos (Mésseder, 2020), livro de poesia infanto-juvenil publicado pela bracarense Poética Edições, nasce do encontro entre os textos poéticos de João Pedro Mésseder e os desenhos de Helena Mancelos – ilustradora, artista plástica, pedagoga artística. Autor de livros infantis e de obras para adultos, vários deles premiados, como Versos com Reversos, Palavra que Voa, Pequeno Livro das Coisas, De Umas Coisas Nascem Outras, Fissura e outros, Mésseder apresenta com esta obra recente uma forma de comunicação literária muito própria e especial para o universo infantil.  

Trata-se de um livro de vinte e três poemas, com doze sugestivas ilustrações em aguarela e carvão vegetal, cujo registo poético, quase sempre afetuoso e delicado, oferece ao leitor um momento de contemplação e – citando o epitexto dum flyer de promoção do livro – de prazer suscitado pela “princesa dos frutos, um não acabar de inspirações tanto para a escrita como para a imagem”, como já sucedia em versos para a infância de Eugénio de Andrade (“Frutos”) e de Matilde Rosa Araújo (“A amiga da China”).

A poesia enquanto “canção”, mas também enquanto “asas”, para citarmos livremente os títulos de duas composições, surge com uma linguagem quase sinestésica, evocadora de sensações gustativas, visuais, olfativas mas também implicada nas representações do real. É como um passaporte para o humor, o jogo, o canto, a cor e a fantasia, tão presentes no universo dos pequenos leitores. Repare-se, a título de exemplo, na composição poética que introduz a obra, “Canção” (p. 5): “É quase sempre doce, / raro ácida / ou magoada / a canção / da tangerina.” Nesta referência metapoética de abertura, o sujeito lírico confere particular atenção à “canção da tangerina”, no que constitui um prelúdio à singularidade dos textos que se seguem. Em “Canção”, canta a tangerina num tom aforístico, recorrendo a três adjetivos prontos – “doce”, “[raro] ácida ou magoada” – e descrevendo-a assim, nestes cinco versos, quer pela positiva quer pela exclusão de atributos, de modo simples e breve.

Foquemos ainda, por um momento, a nossa atenção em “Asas” (p. 8): “Mesmo em sossego / a tangerina esvoaça, / esvoaça a tangerina / no céu dos meus olhos, / esvoaça nos meus dedos / com as suas asas verdes.” Considerando que as “asas” são como que um símbolo da libertação, da desmaterialização e da leveza (Chevalier & Gheerbrant, 2010), em certa medida o título ativa a imaginação no potencial destinatário do texto, desafiando-o a um novo olhar sobre as coisas. Nestes seis versos, recorre-se a expressões que traduzem sensações visuais e táteis (“no céu dos meus olhos, / esvoaça nos meus dedos”), reforçadas por uma anadiplose: “A tangerina esvoaça, / esvoaça a tangerina”, cujo elemento repetitivo quase proporciona uma sensação visual de movimento. Neste momento, a belíssima ilustração – protagonista da capa do livro – entra em diálogo com o texto, atribuindo-lhe um valor visual e estético acrescido. A repetição verbal “esvoaça”, ao longo dos versos, e o nome “sossego” evidenciam uma escrita subtil e elegante que concebe o fruto enquanto luz, sol, vida, delicadeza, beleza, elegância natural e música (a música das sílabas do próprio signo “tangerina” e a das cadências linguísticas nos diferentes poemas  do livro).

O conjunto apresenta diferentes formas poéticas, desde textos breves ou muito breves – caso do haiku ou haicai (poema de três versos apenas, originário do Japão, que procura captar a essência dum instante) – a surpreendentes formulações interrogativas em prosa, em jeito de dúvida ou enigma, passando por composições em tercetos ou quadras, de versos muito cantantes, de redondilha maior ou menor, e por poemas de estrutura dialogal, entre outros.

Fruto da capacidade criadora e inventiva do poeta, surgem pois estes Poemas Tangerinos que perspetivam um novo olhar sobre o mundo, sobre as coisas naturais, harmoniosas e puras, sobre o amor, os afetos, a partilha, a desigualdade e a inclusão, sobre a infância e as memórias do passado.

Destacados os eixos ideotemáticos, é difícil não lembrar ainda o modo como João Manuel Ribeiro (2015) peculiariza a escrita do autor ao defender que a poética de João Pedro Mésseder subsiste no exercício do poder poético e da linguagem, centrada na materialidade da própria palavra. Um aspeto sublinhado por exemplo em “Campainha”, com o seu contorno aliterante e assonântico: “– Sim, escuta bem o som / desta doce campainha, / como um sino pequenino, / que é a palavra // tan-gerina / tan-gerina / tan-gerina.» (p. 7)

O intenso efeito de alguns recursos (como a metáfora) é outro dos traços que potenciam uma representação insólita e paradoxal do mundo – aspeto que sobressai em: “Há um pequenino / fogo / que refresca / na pele, / no coração / da tangerina” (p. 6).

Também o modo de ser e de estar poeticamente nesse mundo se destaca, na medida em que o autor promove um compromisso de reflexão sobre questões universais, apelando à partilha, à inclusão e ao direito à igualdade – traço característico de Mésseder e que potencia o valor ético e humanista dos seus textos (v. Ramos, 2007). Repare-se nos poemas “O menino que não ouve sílabas” e “A menina”, em que surge um olhar preocupado e atento à diferença, através da representação de duas crianças especiais (“Há um menino que não consegue ouvir as sílabas” e “A menina que não vê”), num registo particularmente afetuoso.

Salientemos, por último, a dinâmica do espanto e da lucidez, tão presente na escrita do autor, visível em “As calmantinas” ou “Mandarina”, lugar onde a poesia é concebida como um laboratório de inovação dentro da língua, criando inesperados espaços de humor e interpelação e explorando, até, o “erro criativo”, para usar a expressão rodariana. Ao longo dos textos, a tangerina e o signo que a nomeia constroem uma semântica peculiar. É neste contexto que o autor promove a sensibilidade dos mais novos à linguagem, recorrendo à importância da palavra como fio condutor/potenciador da imaginação, da fantasia e da criação de novos olhares e mundivisões.

Acrescente-se que o apontamento final – “Caderninho de perguntas” (pp. 34-35) – se revela um espaço desafiador, sob a forma de perguntas surpreendentes, que estimulam o questionamento nos leitores e o seu imaginário, conferindo assim certa originalidade a esta secção que serve de remate à obra.

Terminamos apelando à leitura. Trata-se de um livro imprescindível para qualquer tipo de leitor que se queira sentir aconchegado pela música, pelo sabor das palavras e fascinado pelo lugar e pelo valor que estas assumem na escrita de João Pedro Mésseder.  

 

 

Referências bibliográficas

Chevalier, J. & Gheerbrant, A. (2010). Dicionário dos Símbolos. Teorema: Lisboa.

Mésseder, J. P. (2020). Poemas Tangerinos. Poética Edições: Braga (ilustrações de Helena Mancelos).

Ramos, A. M. (2007). A poesia como assédio ao leitor e às palavras: a produção poética de João Pedro Mésseder. Casa da Leitura (Fundação Calouste Gulbenkian): Lisboa (disponível em www.casadaleitura.org).

Ribeiro, J. M. (2015). A poesia infantojuvenil de João Pedro Mésseder: o espanto e a lucidez. In Silva, S. & Ribeiro, J. (org.) A escrita para a infância de João Pedro Mésseder ou como trocar as voltas ao silêncio. Tropelias & Companhia: Porto, 2015, p. 63.

________________

 *Bolseira da FCT