RAQUEL SEREJO MARTINS : A CONVOCAÇÃO DO QUOTIDIANO NUM LIRISMO MELANCÓLICO

Por Cecília Barreira* 

Nasceu em Trás os Montes em 1974. Estudou em Coimbra. Está por Lisboa há anos como economista, mais centrada no Direito Penal Económico. Escreve romance, contos, poesia. Assinalei-a em 2019 no livro de poemas Plantas do Interior. Agora em 2020 com o livro a ser editado no próximo sábado ,dia 17 de julho. Silêncio sálico. Na revista Sábado já a lera. Consta que é vegetariana e gosta de gatos. Nota-se que é pessimista . De um conto na Sábado retirei o excerto, “E porque a vida, há dias de tentação, de engulho, de fraqueza, de apetite, de vontade, de curiosidade, de morder o anzol, a maçã, o gomo da tangerina, os lábios de uma pessoa, pode ser uma pessoa estranha, pode não ser amor”. Ou um poema particularmente belo recolhido na net: “( …) vou olhar com olhos em cio todos os habitantes da cidade, e no olhar mais brilhante encontrar um novo amante, a quem vou, uma vez mais, chamar amor e amar, poro a poro, sem pudor e sem decoro, como um dia amei os meus amores perdidos “ (Poema, We will replace lost lovers). Muitas vezes RSM equaciona-se no melindre, nos percalços do quotidiano. Mas vai muito mais além. É como se a inauguração do real se configurasse nos objetos do dia a dia. Melopeia lírica de um eu melancólico , incandescente, lento e frágil. “ A casa cheia de gente, barulhos domésticos, eletrodomésticos, passos, palavras, risos, pratos, patas de cão e de gato (…) o silêncio do meu quarto, eu às escuras dentro do silêncio do meu quarto, chamam-lhe o meu quarto, mas nada tem de meu o meu quarto, meu o silêncio, um silêncio cheio de barulho e solidão” In Silêncio sálico, p. 6. A escrita de RSM é toda ela um apelo à finitude, ao glorioso gesto de um nada. O quotidiano aí está. O sujeito poético enlaça-se nos episódios de cada momento na certeza da aporia. Uma enunciação sempre justaposta: o lirismo na sua máxima envolvência . O ir buscar “ a senhora da limpeza do meu prédio “ ( p. 39). “ O balde”. O “grão”. Mas após a nomeação destes elementos, a ousadia de um lirismo melódico, entristecido: “Acordava tarde, a encetar o dia só suportava café, cigarros e Bach, na cozinha, enquanto a água não fervia, lia o jornal ainda em papel, num esmero despenteado e de pijama de seda, sempre na companhia de dois gatos. Reservava o verbo amar para gatos, livros, uma mulher”. (idem, p. 45). O cansaço da existência, uma inabitabilidade num mundo . Um conspurcar . A procura sem êxito da felicidade. “ Quero a ignorância do instante antes da felicidade a ignorância do instante antes da catástrofe, a surdez das paredes às orações a surdez dos pés nos pedestais, quero ser como os outros animais, um pouco de prazer um pouco de dor um pouco de amor um pouco de solidão(…)”. (idem, p. 13). Vão se buscar alguns clássicos. Da filosofia à música. Poesia densa . Em apoteose de filtros onde a dor e a persistência inundam o verso sublime “ (…) Agosto começou com o coração nos olhos, termina com o coração atravessado na garganta, o coração pode ler Platão mas não escapa à lei da gravidade, vai, inevitavelmente, entre folhas secas, acabar no chão (…)” (idem,p. 56) A palavra em RSM é toda ela uma toada de plumas e ausências. Perenes , a presença de gatos, plantas, coisas aparentemente vulgares. Talvez o apelo a uma metafísica do real . Mas a intensa veia lírica projeta o real numa urdidura de grande beleza poética. Aqui o apelo à leitura de Silêncio sálico. Agora mesmo, julho de 2020.

 

*Centro de Humanidades / Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa