SOBRE “A SOLIDÃO É COMO O VENTO”, DE GRAÇA PIRES

Breve resenha sobre a obra por Licínia Quitério

A Poesia conta histórias? Interrogo-me. Sei que seria conveniente responder que não, a Poesia não é narrativa, a Poesia é outra coisa, faz outras coisas, eleva-se, distancia-se do ruído dos dias, das dores concretas, dos nomes verdadeiros, preferindo inventá-los, metamorfoseá-los, falar de anjos para dizer homens, ou, ao invés, dizer mulher para  falar de amor primordial. A Poesia finge, pois finge, sem fingir, assim o disse o Poeta. A Poesia é a vida, o mundo, a natureza, o homem, o supremo e o ínfimo. Há quem a sinta, quem a leia, quem a escreva, quem a ignore, quem a venere, quem a tema. Mas voltemos ao princípio: a Poesia conta histórias? Resposta não tenho, não devo. Se resposta fosse, eu diria: Atentemos no livro de Graça Pires. Sim, é um grande livro de histórias, melhor, de história. Sem dizer, era uma vez, ou, foi assim que aconteceu, os poemas passam diante de nós, por dentro de nós, e os personagens acenam-nos, sem nunca se nomearem. Ao ler este livro, vamos dizendo, na mudez a que a leitura convida: sei quem és, eu conheço-te, ou, eu sou essa, tu és esse, somos isso, ou, como adivinhaste, quem te contou, também penso assim, ou, não digas isso, há sempre uma saída, por que me fazes chorar.

Histórias anunciadas no primeiro verso de cada poema e que depois se diluem, se desencaminham, nos desencaminham, numa trama de mistérios e impossibilidades que só a Poesia permite, como, por exemplo: “Naquela aldeia havia uma ribeira”, “Aprendiz de escultor era o seu ofício”, “Foi numa tarde de Maio que as fontes secaram”, “Habitava aquele sítio por engano”.

Histórias contadas em poemas curtos, de verso solto e livre, com  economia do verbo, nem uma palavra a mais, conseguido com trabalho rigoroso da língua portuguesa, resultando numa música suave e escorrente que tanto proporciona uma calma leitura interior como convida a ampliá-la em alta voz para que bem a apreciem.

Histórias muitas, que nos falam de variadíssimos temas alguns dos quais passo a citar:

 - Do desejo, dos homens enfeitiçados pelo ventre das mulheres. Do desejo das mulheres, bordando abraços de mar. “Ela bordou ponto por ponto/os veleiros que adivinhava no seu peito”. E do encontro prodigioso do homem-mulher, ele que sai do deserto, ela que procura o mar.

 - Do mar, como destino, de “um homem (que) morreu sem ver o mar/agora na sua aldeia/os barcos sobrevoam as casas”, e  das mulheres vestidas de luto, a caminho do mar, “a acender estrelas que guiam os marinheiros.”.

 - Da loucura, seus fantasmas, seus códigos, seus caminhos de deambulação, assombração, perdição. “Assombrado, rebolou o corpo/pelo chão até ser trevo rasteiro”.

 - Do amor, caminho e alcance, do seu tempo inaugural, indizível, precário. Do ciúme, sua morte. E do desamor, da rebeldia, quando  “no peito … encalham as barcas da paixão”.

 - Dos lugares, desejados, procurados, nunca encontrados, que trazem escrito no fim  “Quem me dera voltar para a minha casa”.

 - Dos gestos das mulheres, “enigmas que só as mãos das mulheres/sabem decifrar no resgate/de um meticuloso nomadismo.”, ou “com a perícia das unhas arranhou os poros da pele.”, ou “com as mãos sobre as mãos”, ou “a quantos exílios se forçou/para encontrar a mudez propícia/à urdidura de acautelados gestos” ou “vagarosamente enrodilha na anca/as vestes de pano cerzido”.

 - Da Natureza, a fazer corpo com o homem, com a mulher, em interpenetração, em mútuo reconhecimento. A mulher “despia-se e deitava-se na erva/com as mãos sobre o ventre”, ao homem “Um inesperado cio,/bafo da terra em júbilo, alojou-se-lhe no sangue.”

- Da incomunicabilidade, quando a filha pergunta “O que é que nos aconteceu, mãe?” ou o neto reclama do avô “mas isto não é um cavalo a sério, como eu queria”.

- Do silêncio, como lugar recôndito de toda a solidão: em “a puríssima luz do silêncio/na solidão das montanhas.”, ou “a sua boca inchou com o silêncio,/com a poeira, com as ervas secas.”, ou ainda “desenhava  no chão o silêncio/de um tempo demorado”.

- Da memória, quando alguém no seu desdobramento “começou a dissipar a véspera do passado” ou quando com ela vem “o estranho retorno de um espanto”.

- Da indiferença perante os que “saem dos túneis da noite e do medo”, os “excluídos da luz”,  os mesmos que são temidos porque diferentes,  de tal sorte que “à sua passagem fugiam as crianças,/ladravam os cães, agitavam-se as mulheres,/escondiam-se os homens.”

 - Da solidão, (por último, e porque não saberia enumerar todos os temas do livro), Graça fala-nos da solidão, tema primeiro e permanente. Tal como se anuncia no título, ela é como o vento, esse fluido invisível, que vai e volta, maléfico quando persistente, arrasador, dilacerante, afirmativo sempre nos seus sons sem nexo, numa voz próxima da do silêncio. É a solidão que nos versos se mostra/se oculta, como uma dor informe, perfurante, como pode ser o vento. “Ao longo do seu corpo/diluía-se uma solidão/que lhe ocupava os sonhos.” ou “Os limites da solidão a perfurar-lhes o peito.”, ou da solidão não dita em “Envelheceram juntos,/falando cada vez menos/até perderem a voz.”

 Para falar do livro, do que fala a autora, servi-me abundantemente das suas palavras, que não sei outro modo de dizer a Poesia senão com as palavras que para ela nasceram. Citei temas que são carne e respiro desta Poesia, habitada por homens, mulheres, meninos, que nos apontam o dedo, que nos piscam o olho, que nos estendem o braço ou nos viram as costas, que são nossas testemunhas, nossos cúmplices, nossos acusadores. Diz-se a certa altura, “poderão perdoar a nossa ausência?”. Todos eles parecem afincar-se a revelar-nos estradas onde a culpa e a salvação caminham lado a lado, como se fôssemos, nós e eles,  filhos do deus menor.

É tempo de terminar esta breve, modesta resenha em jeito de apresentação do belo livro  “A solidão é como o vento”, que se vai juntar a todos os outros da vasta obra da Graça Pires, igualmente a merecer o nosso respeito, a nossa gratidão.

Que o vento lhe seja favorável e que viva, pelo menos, os cem anos da solidão.